“Alguém tira essa mão do meu prato”, desta forma, L, uma jovem mulher, sem intenção alguma, interrompeu o rito da refeição familiar, enquanto mantinha involuntariamente sua mão esquerda sobre os alimentos há instantes servidos. Ela não reconhecia como sua, aquela parte de seu corpo atravessada sobre a comida. A despeito dos esforços, ninguém à mesa conseguiu convencê-la do que, supostamente, seria óbvio e inquestionável.
Horas depois, em um hospital, uma tomografia do crânio trouxe a explicação. Ela sofrera um infarto cerebral em uma área chamada de pré-cúneo direito. No outro dia, enquanto descansava internada na enfermaria, sua irmã tentava distraí-la ao mostrar fotografias de uma festa em que ambas estiveram. Porém, a paciente era incapaz de se identificar nas imagens, mesmo quando em close.
O pré-cúneo é um centro nervoso de convergência de informações. Integra diversas sensações e as repassa, unificadas, a outros cantos encefálicos. Por causa da caprichosa avaria dentro do crânio de L, a imagem vista da própria mão, não mais se conectava às referências corporais. E os sinais vistos do rosto, estampado em várias fotografias, não se ligavam mais às memórias de sua face. Caso o comprometimento do pré-cúneo fosse ainda mais grave, a paciente enfrentaria um número maior de problemas, esqueceria vários eventos de sua vida e ficaria incapaz de reconhecer as emoções de outras pessoas.
Compreendemos os transtornos de L porque conhecemos o funcionamento do pré-cúneo. Mas, este conhecimento não se acumulou tradicionalmente, à moda da fundação da neurociência no século 19. Neste período, os cientistas, frente a alguém com suposta doença neurológica, anotavam os sintomas e aguardavam pacientemente a hora da necrópsia. A morte dos pacientes trazia a oportunidade para procurar os possíveis danos cerebrais que causavam as deficiências ou alterações comportamentais.
Muitas funções encefálicas foram assim mapeadas no cérebro humano. Porém, raramente um dos pré-cúneos é isoladamente afetado por traumatismo, hemorragia ou isquemia. Casos semelhantes ao aqui descrito são historicamente escassos, logo, o pré-cúneo ficou praticamente inacessível à neurociência por muitas décadas.
Os novos recursos tecnológicos livraram a neurociência da obrigatoriedade das necrópsias. Atualmente, conseguimos analisar o pré-cúneo de pessoas normais e de pessoas doentes, ao vivo, sem ter que derramar uma gota de sangue. Por isso, sabemos que um dos primeiros alvos da doença de Alzheimer é esse pedaço de massa cinzenta. As degenerações causadas por essa afecção gradativamente interrompem as conexões desse centro com as outras áreas cerebrais, que, então, perdem a eficácia e atrofiam.
Portanto, não é apenas o ataque direto provocado pela doença de Alzheimer que corrompe a atividade de pontos específicos corticais, mas também a redução da recepção de fluxos de informações produzidas em outros polos neurais distantes. Os sintomas de L são comuns a algumas demências.
Todo esse aprendizado tem implicações práticas, como recentemente demonstrado pelo neurologista italiano Giacomo Koch, da Universidade de Ferrara. Durante seis meses, ele e sua equipe estimularam pré-cúneos de um grupo de pacientes com doença de Alzheimer, por meio de ondas magnéticas. Um outro grupo de pessoas, também afetadas pela doença, recebeu um tratamento, sem onda alguma —um tipo de placebo. Os indivíduos submetidos à terapia real conquistaram estabilidade cognitiva e tiveram ganhos de autonomia para as atividades do dia a dia. Enquanto aqueles, que não foram tratados, sofreram declínio cognitivo.
Pulsos de ondas magnéticas, em alta frequência, aplicadas sobre o couro cabeludo, excitam um alvo cerebral, no estudo de Koch, o pré-cúneo. Artificialmente mais ativada, esta região anatômica, estimula mais intensivamente os lobos cerebrais sob sua influência. Um processo que fortalece conexões cerebrais previamente estabelecidas e cria outras —um dos mecanismos da neuroplasticidade, por essa razão os pacientes melhoraram. Não se trata de um método que interrompe a degeneração cerebral, ou que revitaliza áreas destruídas. Não sabemos por quanto tempo seus efeitos benéficos persistirão, já que o estudo durou apenas um semestre. Mas temos novos caminhos.
Referências:
1. Koch G, Casula EP, Bonnì S, Borghi I, Assogna M, Minei M, et al. Precuneus magnetic stimulation for Alzheimer’s disease: a randomized, sham-controlled trial. Brain. 2022 Nov 1;145(11):3776–86.
2. Moussavi Z. Repetitive TMS applied to the precuneus stabilizes cognitive status in Alzheimer’s disease. Brain. 2022 Nov 1;145(11):3730–2.
3. Kumral E, Bayam FE, Özdemir HN. Cognitive and Behavioral Disorders in Patients with Precuneal Infarcts. Eur Neurol. 2021;84(3):157–67.
4. Cavanna AE. The precuneus and consciousness. CNS Spectr. 2007 Jul;12(7):545–52.
5. Cavanna AE, Trimble MR. The precuneus: a review of its functional anatomy and behavioural correlates. Brain J Neurol. 2006 Mar;129(Pt 3):564–83.
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